Kazuo Ishiguro – Quando Éramos Órfãos

A ação deste livro situa-se um bocadinho antes da Segunda Guerra Mundial, não fala em nazis, muito pelo contrário, refere Xangai como sendo uma “Zona Internacional”, colónia inglesa e imune às infeções que poderiam resultar dos eventuais contatos com os desgraçados dos chineses.

“O seu discurso, segundo me lembro, foi auto depreciativo e otimista. Na sua opinião, a humanidade tinha aprendido com os seus erros, as estruturas estavam agora firmemente instaladas para garantir que nunca mais veríamos neste globo uma calamidade à escala da Grande Guerra. A guerra, apesar de todo o seu horror, não representava mais do que uma «desagradável janela na evolução do homem», quando, durante alguns anos, o nosso progresso técnico ultrapassara as nossas capacidades organizativas.” – página 46. Utiliza muito as vírgulas e bem, aproximando assim a linguagem escrita, à linguagem falada!

“- Claro, suponho que não. Bem, é verdade que, onde moras, estás a crescer com uma quantidade de tipos de pessoas diferentes à tua volta. Chineses, franceses, alemães, americanos, eu sei lá! Não seria nada de espantar se crescesses um pouco híbrido, com todas essas misturas. – Deu uma pequena gargalhada e continuou: – Mas isso não é mau. Sabes o que penso, Puffin? Penso que não seria realmente mau se rapazes como tu crescessem todos com um bocadinho de tudo. Talvez assim pudéssemos tratar-nos uns aos outros muito melhor. Houvesse menos guerras destas para começar. Oh, sim. Talvez um dia todos estes conflitos acabem, e não será por causa de grandes estadistas, ou igrejas, ou organização como estas. Será porque as pessoas mudaram» – página 79. E aqui temos o nosso herói Christopher Banks, “um miúdo inglês nascido em Xangai do início do século XX, fica órfão aos nove anos de idade, quando seus pais desaparecem misteriosamente. De volta à Inglaterra, torna-se um detetive de renome e circula nos meios mais refinados. Vinte anos depois, Banks resolve rever Xangai – agora palco da guerra sangrenta entre China e Japão. A partir desse momento, sua busca pelos pais passa a confundir-se com a busca pela ordem num mundo órfão, vitimado pela sombra.
Envolvente, a narrativa ganha ritmo de trama policial na voz controlada e minuciosa do protagonista. A aparente frieza do relato, entretanto, não esconde o que Christopher Banks não quer ou não pode ver: que sua memória, sua visão de mundo, não estão imunes às tragédias da infância. No vaivém das reminiscências, o lirismo colide dolorosamente com a matéria dura da realidade.”

“(…) O que me tem chocado silenciosamente, desde o momento da minha chegada, tem sido a recusa de toda esta gente em reconhecer a sua drástica culpabilidade. Ao longo desta quinzena em que tenho permanecido aqui, em todo o meu trato com estes cidadãos, importantes ou insignificantes, não se me deparou – nem uma única vez – qualquer coisa que pudesse ser considerada vergonha genuína. Por outras palavras, aqui, no coração da voragem que ameaça sugar todo o mundo civilizado, lavra uma patética conspiração de recusa – uma recusa de responsabilidade que se fechou em si mesma e fermentou, manifestando-se no género de pretensiosa defensiva que tantas vezes encontrei. E ei-la agora, a chamada nata de Xangai, a tratar com tão grande desdém o sofrimento dos seus vizinhos chineses do outro lado do canal.” – página 162

E vai mandando umas bocas fixes: “(…) – Mas no fim – continuou – esta cidade acaba por nos vencer. Todo o homem atraiçoa o seu amigo. Confiamos em alguém e depois descobrimos que essa pessoa está a soldo de um bandido. Os do governo também são conhecidos. Como pode um detetive cumprir o seu dever num lugar como este? (…)” – página 204

Não resisto, embora o “post” já vá longo, o que significa que os visitantes não o vão ler, com esta me findo porque me faz lembrar cá o burgo: “(…) se não tivessem sido as prevaricações, a imprevidência e, muitas vezes, a desonestidade pura e simples dos que continuavam no comando, a situação jamais teria atingido o presente nível de crise.(…)” – página 216

Nunca me deixes – Um Artista do Mundo Flutuante

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